Das novelas para as legendas, o mesmo método narrativo
Como novelista em publicações juvenis, Raul Correia foi realmente um precursor, não só ao criar um estilo apreciado por todos os leitores (em que, na harmonia da forma e na icástica simplicidade do verbo, transparecia a influência de Eça de Queirós, o seu romancista favorito), mas, sobretudo, abrindo múltiplos caminhos a uma geração de novos escritores, também exímios no género de aventuras, que apadrinhou e acarinhou como um verdadeiro mestre. Graças ao seu exemplo e ao seu espírito de abertura (secundado por Cardoso Lopes), é que a produção de novelas n’O Mosquito foi muito superior à de histórias aos quadradinhos de autores nacionais, mesmo tendo em conta que entre estes figuravam E. T. Coelho, Vítor Péon, Jayme Cortez, José Garcês e José Ruy, que se estrearam quase todos nas mesmas páginas.
Com a chegada de Lúcio Cardador, Orlando Marques e José Padinha, a presença de Raul Correia como novelista tornou-se mais discreta, no propósito deliberado de dar lugar aos novos. Colaborou também n’A Formiga, suplemento para as meninas dirigido por Tia Nita (Mariana Cardoso Lopes), e noutras publicações das Edições O Mosquito, como Filmagem (onde assinou algumas crónicas com o curioso pseudónimo de João da Lua) e Mosquito Magazine. O cariz diferente desses trabalhos — bem como as impagáveis legendas que escreveu para Serafim e Malacueco e muitas outras séries cómicas inglesas — dão bem a ideia do seu talento e da sua versatilidade.
Também traduziu e adaptou muitas séries de aventuras que ficaram célebres, como Pelo Mundo Fora, O Gavião dos Mares, O Capitão Meia-Noite, O Voo da Águia, Na Pista de Fu-Chong, Os Companheiros de Londres, Ao Serviço da Lei, O Capitão Ciclone, Cuto, O Planeta Misterioso, Pepe Carter e Coco, etc, e colaborou, em estreita união, com E. T. Coelho nalgumas das melhores criações do genial desenhador, nomeadamente Os Guerreiros do Lago Verde, O Grande Rifle Branco, Os Náufragos do Barco Sem Nome, Falcão Negro, o Filho de Jim West, Sigurd, o Herói, O Caminho do Oriente, A Moura e A Fonte, A Moura e o Dragão, A Lei da Selva, Lobo Cinzento, cujas legendas escreveu com inexcedível mestria, numa prosa elegante, emotiva e vigorosa que não ficava aquém da beleza formal e da energia cinética que irradiavam das imagens.
É verdade que não se lhe pode legitimamente atribuir a co-autoria dessas histórias, mas seria lamentável e injusto não reconhecer que sem a sua prosa elas ficariam desfalcadas de um importante elemento, na relação verbo-icónica.
Outro dos seus melhores trabalhos como autor de legendas, que escrevia baseado apenas nos desenhos, sem outro suporte narrativo — no caso das HQ’s nacionais —, está patente em A Casa da Azenha, magistral criação de Vítor Péon, inspirada nos clássicos da “novela negra” americana. Não sabemos se foi Péon (cuja carreira artística muito ficou, também, a dever ao impulso que lhe deu O Mosquito) quem teve a ideia de narrar a história na 1ª pessoa, mas o certo é que esse método típico da literatura policial, sobretudo de autores como Dashiell Hammett e Raymond Chandler, tornou ainda mais vernácula a prosa de Raul Correia, que para entrar no âmago de uma história, mesmo inventada por outrem, precisava apenas de apelar à sua imaginação.
Há quem o acuse apressadamente de ser demasiado redundante nas legendas que escrevia, mas esses detractores recentes esquecem-se de que as histórias com textos didascálicos tinham dois níveis diferentes (e autónomos) de leitura. Os desenhos, mesmo expressivos como os dos autores ingleses que rechearam os primeiros anos d’O Mosquito, não podiam contar tudo, pois faltava-lhes o discurso directo, parte integrante, hoje em dia, de qualquer história aos quadradinhos.
Como novelista e autor de legendas, Raul Correia procurava acima de tudo descrever fluentemente (e coerentemente) o desen- rolar da acção, sem se preocupar com o excesso de prosa, pondo mesmo em risco, por vezes, a integridade das vinhetas, isto é, dos desenhos. Não era um escritor de meias palavras… para mal dos tipógrafos, mas benefício dos leitores! E isso era qualidade mais do que suficiente para que estes seguissem com tanta atenção e interesse a sequência narrativa como a sequência desenhada.
Foi graças à expressividade do seu verbo e ao vigor do seu estilo que os heróis das histórias “mudas” inglesas ganharam vida, parecendo ultrapassar o limite das vinhetas, de formato geralmente uniforme, como se a acção extravasasse para um espaço mais vasto: o do imaginário narrativo.
Aliás, Raul Correia teve bons discípulos, como Roussado Pinto, Orlando Marques e outros, que também se distinguiram como prolixos narradores, dando primazia, nas HQ’s que criaram, ao texto didascálico ou no interior das vinhetas. Escola de raízes literárias que, durante muito tempo, dos anos 20 até quase aos 80, foi predominante na BD portuguesa do século passado (mas isso será tema para outro trabalho), essa forma narrativa estava intimamente associada à influência do romance (sobretudo o de características mais juvenis) e dos fascículos populares (a chamada literatura de cordel), que antecedeu a influência do cinema e do cartoon na evolução orgânica da Banda Desenhada.
Para Raul Correia, novelista, tradutor e autor de legendas, que abominava os “balões”, o texto descritivo foi sempre a sua linguagem narrativa peculiar.