OS REIS DO RISO D’O MOSQUITO – 4

 A exuberante fantasia de Arturo Moreno

morenoComo tínhamos prometido, num post recente, também dedicado a Arturo Moreno, eis uma primeira selecção dos seus trabalhos humorísticos publicados n’O Mosquito (anos de 1936 e 1937). Seguindo as pisadas de Cabrero Arnal, outro consagrado autor espanhol, Moreno especializou-se nas historietas com gags de uma página, mas ao mesmo tempo lançou-se em projectos mais ambiciosos, alardeando a sua criatividade numa inolvidável criação — as  trepidantes aventuras de três heróis fora do comum, que logo caíram no goto dos jovens portugueses e espanhóis: Mick, Mock e Muck, pitoresco trio formado por um velho marinheiro, um grumete e o seu cão, que corriam mundo vivendo as mais audaciosas e rocambolescas peripécias.

mosquito-62Na memória dos leitores d’O Mosquito ficou também um histriónico personagem chamado D. Triquetraque, cujos pacatos hábitos citadinos (nem sempre isentos de emoções, como demonstra a página anexa) sofreram uma brusca reviravolta ao tornar-se um intrépido explorador das selvas africanas e de outras exóticas paragens. A aventura, condimentada com um humor satírico e um traço caricatural cheio de expressividade e fantasia, estava sempre presente nas criações de maior fôlego de Arturo Moreno, como Mick, Mock e Muck, Ponto Negro e Garbancito de la Mancha, o primeiro filme de animação totalmente produzido e realizado em Espanha, coroa de glória de uma nova arte europeia que procurava competir, embora mais modestamente, com a “fábrica de maravilhas” de Walt Disney.

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CURIOSIDADES E ANOMALIAS – 5

mosquito-62Aqui têm outro exemplo das trocas e erros de numeração que ocorriam com alguma frequência n’O Mosquito dos tempos heróicos, quando a sua tiragem não parava de crescer, na razão directa da popularidade conquis- tada, desde o primeiro número, entre o entusiástico público infanto-juvenil.

Embora fosse o principal responsável pela direcção gráfica e artística do jornal, António Cardoso Lopes (Tiotónio) não podia atender a tudo, sobretudo na época em que O Mosquito ainda não tinha oficinas próprias. Mas mesmo depois disso, embora a quali- dade de impressão tivesse melhorado bastante, os erros numéricos não acabaram, para arrelia dos tipógrafos e confusão dos leitores, sobretudo dos que já pensavam em coleccionar a revista.

Até Novembro de 1939, como já referimos noutro post desta rubrica, O Mosquito era impresso numa primitiva máquina da Litografia Castro, sita na Travessa das Pedras Negras, em Lisboa (onde funcionava também, para efeitos legais, a sua redacção e administração provisória) —, máquina essa que, aliás, mosquito-62-bisjá não era a mesma que tinha dado à estampa os seus primeiros números, com uma tiragem que orçava entre os 5.000 e os 7.500 exemplares semanais. Mas essa tiragem não tardou muito a atingir o dobro, obrigando a gráfica a utilizar outra máquina maior e mais rápida para não agravar os repetidos atrasos na periodicidade d’O Mosquito (que era, então, distribuído pela Empresa Nacional de Publicidade).

Admira-nos, por isso, que o erro que se detecta entre os nºs 62 e 63, aqui reproduzidos — com capas ilustradas pelo grande artista espanhol Arturo Moreno —, não tivesse acontecido mais cedo. A “gralha”, desta vez, foi apenas de numeração, estando as datas correctas. O que não serve de aviso para os coleccionadores, antigos e actuais, sobretudo para os menos atentos a estes pormenores, que correm o risco de omitir nas suas listas dois nºs 62, ficando assim sempre à espera que lhes apareça um nº 63 que, em teoria, não existe. Pelo menos, até alguém demonstrar o contrário, exibindo um exemplar correctamente datado e numerado… que poderá valer, para os interessados, o seu “peso em ouro”.

RAUL CORREIA: A importância de um estilo – 3

Das novelas para as legendas, o mesmo método narrativo

Raoul Correia e Cardoso LopesComo novelista em publicações juvenis, Raul Correia foi realmente um precursor, não só ao criar um estilo apreciado por todos os leitores (em que, na harmonia da forma e na icástica simplicidade do verbo, transparecia a influência de Eça de Queirós, o seu romancista favorito), mas, sobretudo, abrindo múltiplos caminhos a uma geração de novos escritores, também exímios no género de aventuras, que apadrinhou e acarinhou como um verdadeiro mestre. Graças ao seu exemplo e ao seu espírito de abertura (secundado por Cardoso Lopes), é que a produção de novelas n’O Mosquito foi muito superior à de histórias aos quadradinhos de autores nacionais, mesmo tendo em conta que entre estes figuravam E. T. Coelho, Vítor Péon, Jayme Cortez, José Garcês e José Ruy, que se estrearam quase todos nas mesmas páginas.

pelo-mundo-fora-mosq-124-902Com a chegada de Lúcio Cardador, Orlando Marques e José Padinha, a presença de Raul Correia como novelista tornou-se mais discreta, no propósito deliberado de dar lugar aos novos. Colaborou também n’A Formiga, suplemento para as meninas dirigido por Tia Nita (Mariana Cardoso Lopes), e noutras publicações das Edições O Mosquito, como Filmagem (onde assinou algumas crónicas com o curioso pseudónimo de João da Lua) e Mosquito Magazine. O cariz diferente desses trabalhos — bem como as impagáveis legendas que escreveu para Serafim e Malacueco e muitas outras séries cómicas inglesas — dão bem a ideia do seu talento e da sua versatilidade.

Também traduziu e adaptou muitas séries de aventuras que ficaram célebres, como Pelo Mundo Fora, O Gavião dos Mares, O Capitão Meia-Noite, O Voo da Águia, Na Pista de Fu-Chong, Os Companheiros de Londres, Ao Serviço da Lei, O Capitão Ciclone, Cuto, O Planeta Misterioso, Pepe Carter e Coco, etc, e colaborou, em estreita união, com E. T. Coelho nalgumas das melhores criações do genial desenhador, nomeadamente Os Guerreiros do Lago Verde, O Grande Rifle Branco, Os Náufragos do Barco Sem Nome, Falcão Negro, o Filho de Jim West, Sigurd, o Herói, O Caminho do Oriente, A Moura e A Fonte, A Moura e o Dragão, A Lei da Selva, Lobo Cinzento, cujas legendas escreveu com inexcedível mestria, numa prosa elegante, emotiva e vigorosa que não ficava aquém da beleza formal e da energia cinética que irradiavam das imagens.

mosquito-253-gaviao-dos-mares904É verdade que não se lhe pode legitimamente atribuir a co-autoria dessas histórias, mas seria lamentável e injusto não reconhecer que sem a sua prosa elas ficariam desfalcadas de um importante elemento, na relação verbo-icónica.

Outro dos seus melhores trabalhos como autor de legendas, que escrevia baseado apenas nos desenhos, sem outro suporte narrativo — no caso das HQ’s nacionais —, está patente em A Casa da Azenha, magistral criação de Vítor Péon, inspirada nos clássicos da “novela negra” americana. Não sabemos se foi Péon (cuja carreira artística muito ficou, também, a dever ao impulso que lhe deu O Mosquito) quem teve a ideia de narrar a história na 1ª pessoa, mas o certo é que esse método típico da literatura policial, sobretudo de autores como Dashiell Hammett e Raymond Chandler, tornou ainda mais vernácula a prosa de Raul Correia, que para entrar no âmago de uma história, mesmo inventada por outrem, precisava apenas de apelar à sua imaginação.

Há quem o acuse apressadamente de ser demasiado redundante nas legendas que escrevia, mas esses detractores recentes esquecem-se de que as histórias com textos didascálicos tinham dois níveis diferentes (e autónomos) de leitura. Os desenhos, mesmo expressivos como os dos autores ingleses que rechearam os primeiros anos d’O Mosquito, não podiam contar tudo, pois faltava-lhes o discurso directo, parte integrante, hoje em dia, de qualquer história aos quadradinhos.

Como novelista e autor de legendas, Raul Correia procurava acima de tudo descrever fluentemente (e coerentemente) o desen- rolar da acção, sem se preocupar com o excesso de prosa, pondo mesmo em risco, por vezes, a integridade das vinhetas, isto é, dos desenhos. Não era um escritor de meias palavras… para mal dos tipógrafos, mas benefício dos leitores! E isso era qualidade mais do que suficiente para que estes seguissem com tanta atenção e interesse a sequência narrativa como a sequência desenhada.

Foi graças à expressividade do seu verbo e ao vigor do seu estilo que os heróis das histórias “mudas” inglesas ganharam vida, parecendo ultrapassar o limite das vinhetas, de formato geralmente uniforme, como se a acção extravasasse para um espaço mais vasto: o do imaginário narrativo.

Aliás, Raul Correia teve bons discípulos, como Roussado Pinto, Orlando Marques e outros, que também se distinguiram como prolixos narradores, dando primazia, nas HQ’s que criaram, ao texto didascálico ou no interior das vinhetas. Escola de raízes literárias que, durante muito tempo, dos anos 20 até quase aos 80, foi predominante na BD portuguesa do século passado (mas isso será tema para outro trabalho), essa forma narrativa estava intimamente associada à influência do romance (sobretudo o de características mais juvenis) e dos fascículos populares (a chamada literatura de cordel), que antecedeu a influência do cinema e do cartoon na evolução orgânica da Banda Desenhada.

Para Raul Correia, novelista, tradutor e autor de legendas, que abominava os “balões”, o texto descritivo foi sempre a sua linguagem narrativa peculiar.

UMA DATA QUE MERECE SER ASSINALADA

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Ao completar 70 anos de carreira na área da Banda Desenhada, acontece que esta efeméride coincide exactamente com a minha entrada no famoso jornal infantil O Mosquito. Ainda estudante da Escola António Arroio, visitei com o saudoso Mestre Rodrigues Alves as oficinas d’O Mosquito, onde tive o privilégio de conhecer o seu director, o Amigo desde a primeira hora António Cardoso Lopes.

O carinho dispensado na visita viria a confirmar-se quando, em Outubro de 1946, passei a colaborar no jornal que lia desde os oito anos. Soube, mais tarde, que o meu querido Amigo Roussado Pinto tinha também apadrinhado a minha entrada naquele popular bissemanário. Recordo a emoção dos dias que antecede­ram a publicação da minha primeira his­tória, com um título que revelava o fascí­nio que me tinham causado as aventuras de Tarzan e os desenhos do Mestre Burne Hogarth, desenhador americano que vim a conhecer nos anos 80, em Itália, e que foi apresentado pelo Vasco Granja aos dois portugueses presentes, eu e o E. T. Coelho.

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A história «O Inferno Verde», imagina­da por mim, teve o apoio na parte do tex­to desse grande novelista e poeta que se chamou Raul Correia, de quem me lembro com muita gratidão pela amizade e o carinho que sempre me dispensava quando me recebia no seu gabinete de trabalho, no Hotel Avenida Palace.

N’O Mosquito aprendi muito com todos esses amigos e colegas. Mas a vida tem caminhos difíceis e, por isso, o Cortez partiu para o Brasil, o Coelho para França, o Péon para Inglaterra. Eu fiquei, já então na função pública e a trabalhar para vários jornais de Banda Desenhada. Não me encantava a emigração e fui ficando preso à família e ao país. Mas não estou arrependido.

Hoje, quando olho para os meus pri­meiros trabalhos e observo a ingenuidade e as imensas deficiências de alguns deles, nem sempre me lembro de que tinha 18 anos e que a Escola António Arroio não ensina­va desenho de figura. Foi a partir d’O Mosquito que, com o apoio do Mestre Rodrigues Alves e os conselhos de António Cardoso Lopes e Eduardo Teixeira Coelho, iniciei o meu caminho de investigação e estudo, que contribuiu para que hoje seja possível apresentar um balanço positivo ao atingir 70 anos de acti­vidade no mundo da BD.

JOSÉ GARCÊS

Nota: Este depoimento do veterano Mestre José Garcês, que muito nos apraz publicar, devidamente inserido nas evocações dos seus 70 anos de carreira artística, pode servir como intróito da antologia que em breve iremos dedicar-lhe, começando pelo seu primeiro trabalho publicado n’O Mosquito, a partir do nº 762, de 12 de Outubro de 1946: a curta e exótica história de aventuras «O Inferno Verde».

Aproveitamos esta data para endereçar a José Garcês, em nome do nosso blogue, como já o fizemos pessoalmente, as mais jubilosas felicitações pela sua memorável carreira em várias áreas das artes figurativas, incluindo, numa avassaladora percentagem, um dos seus primeiros e maiores amores: as histórias aos quadradinhos. 

MAIS UMA HOMENAGEM A JOSÉ GARCÊS

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Num ano assinalado por várias manifestações comemorativas dos 70 anos de carreira artística de um dos maiores autores e ilustradores portugueses — como a exposição que esteve patente na Biblioteca Nacional, durante os meses de Março e Abril, numa parceria desta instituição com o Clube Português de Banda Desenhada —, José Garcês, ilustre veterano de uma lúdica forma de Arte que tanto ajudou a  prestigiar, vai ser novamente homenageado, desta vez pela Associação Portuguesa de Psicogerontologia, que lhe atribuiu o prémio Drª. Maria Raquel Ribeiro. A cerimónia, em que serão também distinguidas outras personalidades, realiza-se no próximo dia 11 de Outubro, a partir das 14h30, no Auditório do Montepio, sito na Rua do Ouro nºs. 219/241 – Lisboa.

Este prémio (instituído no dia 1 de Outubro de 2012, Dia Internacional das Pessoas Idosas, com o apoio da Fundação Montepio e da Santa Casa da Misericórdia de Lisboa) visa dignificar o envelhecimento activo e promover uma imagem positiva das pessoas com mais de 80 anos que se mantêm activas e participativas, dentro da sua área cívica ou profissional, prestando, desse modo, um contributo relevante para a sociedade portuguesa. José Garcês foi agraciado na Categoria Arte e Espectáculo, juntando-se a outros ilustres homenageados, nas anteriores atribuições de tão honorífico galardão: Eunice Munoz (2012), Ruy de Carvalho (2013), Carmen Dolores (2014) e Glória de Matos (2015).

PARABÉNS, MESTRE JOSÉ GARCÊS!

CANTINHO DE UM POETA – 27

Eis mais um belo poema de Raul Correia, de métrica perfeita e ritmo melódico — já com acordes outonais —, que extraímos do Jornal do Cuto nº 36, de 8/3/1972.

A ilustração de José Batista (Jobat), outonal também, reforça a ideia de que uma profunda afinidade se estabeleceu, desde o início, entre o poeta, criador de harmonias e de sonhos, e o artista gráfico, criador de linhas e de formas.