O Mosquito foi, sem dúvida, um verdadeiro banco de ensaio para os principais desenhadores portugueses da década de 1940: Vítor Péon, E.T. Coelho, Jayme Cortez, José Garcês, José Ruy. Só por lá não passaram Fernando Bento, Júlio Gil e António Barata.
Nem sequer havia uniformidade de estilos na revista dirigida artisticamente por António Cardoso Lopes Jr. (Tiotónio). O que havia era juventude, entusiasmo, arrojo, fantasia, inovação, mesmo quando algumas influências saltavam à vista. Diz-se que E.T. Coelho, considerado o mais talentoso desse grupo de novos ilustradores, criou uma “escola”, influenciando quase todos os artistas de Banda Desenhada da sua geração. Curiosamente, é fora d’O Mosquito (com excepção de José Ruy) que vamos encontrar, mais tarde, os seus “discípulos”. Mesmo quando Péon era acusado, por alguns sectores, de copiar Coelho, já se descobria nas suas histórias aos quadradinhos o gérmen de um estilo pessoal, que acabaria por evoluir noutra direcção. Péon nunca se limitou a ser um ilustrador; Coelho, por vezes, ressentia-se disso. Os leitores chegaram, em certa altura, a preferir o primeiro ao segundo, e lá sabiam porquê.
Vem todo este arrazoado a propósito de um jovem desenhador — tinha, então, 18 anos — que se estreou n’O Mosquito nº 762, de 12 de Outubro de 1946, com uma HQ que já denotava as suas reais capacidades. Era um estilo novo, diferente de tudo o que já se tinha visto no jornal, embora quem examinasse atentamente os desenhos se aperce- besse da influência, mais subtil do que profunda, do mestre norte-americano Burne Hogarth, o mais famoso desenhador de Tarzan. Essa história intitulava-se “O Inferno Verde” e o seu autor era J. Garcês — assinatura num canto do último quadradinho, que iria tornar-se rapidamente conhecida.
O estilo era correcto e meticuloso, e assim permaneceria até hoje (exceptuando alguns trabalhos realizados em épocas mais conturbadas, quando as preocupações familiares e a falta de tempo, pois era desenhador-litógrafo do Serviço Nacional de Meteorologia, pesavam sobre o artista). À harmonia de linhas e de formas opunha-se um certo estatismo da expressão corporal,
compensado pela perfeição dos enquadramentos e dos cenários, embora já se manifestasse a tendência para o plano geral. Há a registar, também, o bom emprego das sombras e do tracejado, importante meio estético que Garcês já demons- trava dominar com segurança.
Depois dessa promissora estreia, apare- ceram n’O Mosquito, durante os dois anos seguintes, mais três histórias com a sua assinatura: “O Império Enlutado” (2ª vinheta), “O Segredo das Águas do Rio” e “A Maldição Branca”. Os progressos foram árduos e lentos, mas era notória a aptidão narrativa e o à vontade com que o novel artista retratava personagens e ambientes exóticos — sem excluir o cenário, tão popular entre a juventude, do turbulento Oeste americano.
Na última etapa, o seu estilo já amadurecera o suficiente para figurar em primeiro plano num jornal que continuava a publicar duas das melhores histórias de E.T. Coelho, “O Caminho do Oriente” e “A Lei da Selva”, e onde se estreara pouco antes outra obra-prima, o Príncipe Valente, de Harold Foster (que se tornaria o seu desenhador favorito).
Os balões estavam ausentes, mas a maioria dos desenhadores portugueses dessa época ainda não se tinham afeiçoado à moderna linguagem dos comics americanos, apesar do exemplo dos artistas catalães que, a partir de meados dos anos 1940, revolucionaram O Mosquito: Jesús e Alejandro Blasco, Emilio Freixas, Puigmiquel, Carlos Roca, etc.
Cremos que a regra das legendas em didascálico, que duraram até ao último número, foi imposta por Raul Correia, director literário d’O Mosquito (embora Cardoso Lopes raspasse todos os diálogos das HQ inglesas, há balões em muitas das suas histórias), pois é um facto que Raul Correia sempre preferiu trabalhar com legendas, onde a sua veia de prosador e poeta podia espraiar-se à vontade. São dele, aliás, todos os textos das histórias publicadas n’O Mosquito, não só das que traduziu e adaptou (espanholas, francesas, inglesas e americanas), como dos originais portugueses de Coelho, Péon, Garcês, Cortez e, mais tarde, José Ruy e Monteiro Neves.
Aluno da Escola António Arroio e do Mestre Rodrigues Alves, que lhe incutiu uma sólida formação artística, Garcês revelou grande habilidade, desde o início da sua carreira, para a execução de presépios e construções de armar (esta última, uma modalidade que esteve muito em voga nas revistas infanto- -juvenis da primeira metade do século XX e que ele cultivou com grande sucesso).
Mais tarde, ao ingressar na revista feminina Modas e Bordados e nos semanários infantis Lusitas e Camarada, viria a especializar-se num tema a que poucos desenhadores podem habilitar-se sem estarem para tal devidamente preparados: a BD histórica. Escolha que, se por um lado contribuiu para a sua consagração oficial (como ele próprio admite), serviu também, durante algum tempo, para alimentar as críticas (preconceituosas e pouco fundamentadas) de muitos detractores desse género de narrativas.
Mas são as produções da sua juventude (como “Fathma”, “Rumo a Oriente”, “A Princesa e o Mágico”, “A Ave Encantada”, “As Três Princesas Cristãs”), fantásticas, alegóricas e barrocas, aliando a poesia do fundo à delicadeza da forma, que muitos dos seus leitores de antanho continuam a recordar — e talvez até a preferir.
A seguir: “O Inferno Verde”, história publicada nos nºs 762 a 769 d’O Mosquito.

A predilecção de J. Garcês, no início da sua carreira, por temas fantásticos e ambientes feéricos está bem patente nesta história (Camarada, 1949)