III
Um grande amigo do meu avô era o George Black, um aviador civil inglês, ou melhor dizendo, um “glorioso maluco das máquinas voadoras”! Sempre impecavelmente vestido, dono de um sentido de humor tipicamente britânico e amante de carros desportivos, incarnava na perfeição a imagem do “British Gentleman” aventureiro. Era visita regular em casa do meu avô e foi padrinho do meu tio Jorge, razão pela qual o dito meu tio se chama Jorge! A minha mãe lembra-se do “Mister” Black lhe levar invariavelmente aqueles “lápis de chocolate” Regina, cada um de sua cor e que, se não me engano, ainda são feitos hoje…
Este senhor tinha uma imaginação fértil e contava histórias algo exageradas; o meu avô ouvia e no fim dizia-lhe: “Isso é tudo mentira!” O amigo respondia-lhe: “Até pode ser mentira, mas tem muita piada!”
O George Black passava grandes temporadas no Avenida Palace, durante os anos da guerra, e vou contar-vos dois episódios que ilustram bem a sua personalidade — estas duas histórias são bem verdadeiras, testemunhadas pelo meu avô. Certo dia, apareceu no hotel um espião alemão, muito alto, louro e de olhos azuis, que ao ser recebido no gabinete do meu avô, lhe disse que era espanhol… (era comum os espiões alemães terem passaportes espanhóis). O George Black, que estava no gabinete, olhou para o alemão e disse-lhe calmamente: “Com esse ar andaluz, nem precisava de dizer que era espanhol!”
A outra “cena” aconteceu semanas mais tarde, quando um Judeu que tinha conseguido obter uma “Navy Cert.” (Navy Certification, uma licença/autorização que permitia a um navio sair do porto), foi ao hotel dizer ao meu avô que precisava urgentemente de um navio para ir para a América… O George Black respondeu-lhe: “Epá, que azar! Vendemos o último navio mesmo há bocado!”
Tal como era um exímio contador de anedotas, o sentido de humor do meu avô não ficava atrás. Um dia, a D. Júlia, que era a empregada da altura, entrou inadvertidamente no quarto dos meus avós e “apanhou” o meu avô de camisola interior. Recuou, embaraçada, dizendo: “Peço muita desculpa, Sr. Raul, não sabia que estava aí! Eu não vi nada! Eu não vi nada!”. Ao que o meu avô calmamente respondeu, deixando a pobre senhora ainda mais embaraçada: — Parece impossível D. Júlia, então não viu nada?! Noutra altura, a mesma D. Júlia, ao telefonar lá para casa, apresentou-se no auscultador dizendo: “Fala a Dona Júlia…” O meu avó, que atendeu a chamada, respondeu-lhe no mesmo tom: “Daqui fala o Dom Raul!”
Lembro-me de o ver a escrever nos fins-de-semana de Inverno, sentado em frente à máquina, de roupão, com o sempre presente cigarro a queimar no cinzeiro, e da minha avó o ir chamar para o almoço ou para o jantar… De vez em quando, íamos jantar ao Córsega, um restaurante que ficava na praceta ao lado. Ainda existe e mantém o mesmo nome.
Lembro-me dos almoços, das lancharadas e dos jantares de domingo na casa de Benfica, com os filhos, genros, noras e netos… era uma festa!
No que respeita a comida, o meu avô comia como um adolescente, ou seja, muito! Era um grande apreciador de “entradas” e aperitivos antes do jantar. Em vez de pão com queijo, era mais queijo com pão, ou manteiga… a seguir e sempre, a sopa, depois o prato e a sobremesa. Tinha a particularidade de dobrar o ovo estrelado em quatro e comê-lo de uma só vez! Terminava religiosamente a refeição com um conhaque em balão aquecido.
Durante os anos em que foi director do Avenida Palace, tomava invariavelmente o pequeno- -almoço na sala de jantar, de pé, já vestido e pronto a sair — café com leite e pão com manteiga. De 1940 a 1960, foram muitos pequenos-almoços de pé!
Outro hábito que o meu avô tinha antes de sair de casa, era ver-se no grande espelho do guarda-fatos, de frente, de lado e de costas, para se certificar de que tudo estava bem… A minha avó, diligentemente, escovava-lhe o chapéu “bogartiano”, um beijo e até logo! Mas, antes disso, demorava sempre meia-hora na casa de banho, sendo que os filhos tinham de ir primeiro ou então de esperar que ele saísse, o que significava chegarem atrasados à escola — o que por vezes acontecia —, porque, normalmente, era o meu avô que os levava antes de ir trabalhar. A minha mãe lembra-se de caminharem pela rua e quando tinham de atravessar a estrada, paravam todos ao seu lado e só o faziam à sua ordem de “Atravessar!” Quando vinha um carro, dizia “Ops!” Ao chegar a casa, todos o esperavam à porta para lhe darem um beijo! Outros tempos… Chegava para jantar, no autocarro que parava às 21.03 na paragem da Praça de Londres.
O meu avô nunca quis conduzir nem ter carro. Preferia andar a pé, de autocarro ou de táxi. Raramente saíam de casa depois do jantar, excepção feita aos domingos, em que iam sempre ao cinema, umas vezes os dois, outras com os filhos.
Enquanto viveram na Rua do Zaire, o Sr. Carlos Machado, que era o barbeiro do meu avô, ia todos os domingos lá a casa para lhe cortar o cabelo e fazer a barba.
O Sr. Carlos tinha mulher e três filhas de quem os meus avós gostavam muito e ajudavam ainda mais. Como prova da sua gratidão, a família Machado fez-se fotografar em formato de postal e ofereceram, com grande emoção, a fotografia aos meus avós. No verso escreveram: “Aos nossos queridos protectores, como prova de eterno reconhecimento”. Escreveram os seus nomes e, por baixo, a data: Lisboa, 16 de Maio de 1944.